O
horário de verão nos engana que ainda é tarde quando já é noite. E foi num
desses começos de noite alaranjados em que eu pedalava pela Av. Sumaré,
voltando pra casa no primeiro sábado do ano de 2013, com a cidade ainda vazia
devido às festividades de ano-novo, que parei no semáforo embaixo da Av. Dr.
Arnaldo (onde a Av. Sumaré já é Av. Paulo VI). Esperei que dois carros
passassem emparelhados e sem pressa, atravessando a rua em direção à Vila
Madalena, enquanto através de suas janelas abertas jovens gritavam uns com os
outros em tom de brincadeira. Os dois carros desapareceram gritando na
distância e o caminho ficou livre, mas fiquei ali parado em frente à faixa de
pedestres, em parte pra descansar as pernas da subida que havia deixado para
trás.
Escutei
um barulho se arrastando atrás de mim, e me virei. Um catador de papel, com a
carroça vazia, se aproximava lento prestes a parar comigo em frente ao semáforo
ainda vermelho. Usava uma bermuda amarela, regata amarela, e boné amarelo, além
de um tênis preto velho e óculos de sol. Tinha um rádio de pilha amarrado ao
cabo que usava para puxar a carroça, e quando me viu virar a cabeça para vê-lo,
disse algo que não consegui compreender devido ao barulho da rotação de um
motor que se aproximava em alta velocidade. O semáforo ainda estava fechado,
mas a calma da cidade não conteve a pressa de um motorista, que bateu no
carroceiro exatamente no momento em que ele virava a carroça para se alinhar à
minha esquerda.
O
homem todo amarelo foi lançado ao ar como numa catapulta, quando o carro o
acertou por trás levantando bruscamente a dianteira da carroça, e impulsionando-o
para cima apoiado no cabo, o mesmo que servia de suporte para seu rádio. A
realidade pode não ter sido tão teatral quanto minha memória, mas lembro de
seus tênis terem ficado no chão enquanto ele voava para trás, de tão rápido que
foi o choque. Como num desenho animado, a primeira lei de Newton dava um tom
cômico à tragédia.
Observei
atônito o carro de vidros escuros engatar a ré, desviar, e sumir por entre os
últimos raios de sol em direção à Av. Henrique Schaumann, enquanto eu calculava
que nunca poderia alcançá-lo de bicicleta. Então fui para a parte de trás da
carroça, e lá vi o homem deitado no chão com os olhos semicerrados. Seu boné
amarelo havia se colorido parcialmente de um tom vermelho-beterraba, e eu percebi
que precisava de ajuda. Ao meu redor, a rua estava vazia, exceto por uma moto e
um carro que seguiam na pista em direção contrária. Peguei meu celular e
disquei o número 192, no qual uma pessoa me atendeu prontamente e pediu com
calma dados do local e estado do acidentado. Enquanto eu descrevia a situação,
os olhos semicerrados do homem se fecharam completamente.
Ao
desligar o celular, vi na tela as horas. Os minutos, para ser mais exato. Minutos
que pareceram passar em câmera lenta a partir de então, sem que eu escutasse
nenhuma sirene se aproximando, nem nenhum carro vindo. Por quatro minutos e
meio, em plena cidade de São Paulo, não apareceu no meu raio de visão nenhum carro
e nenhum ser humano. E o único ser humano que eu podia ver, parecia não estar
mais vivo. Pensei em ir embora, corri até o canteiro central da avenida, depois
de volta, sentei na calçada ao lado da carroça e no mesmo segundo escutei um
barulho de freio. Levantei e vi do outro lado do cruzamento um taxi que atravessava
o farol vermelho e vinha em nossa direção.
O
taxista entrou na contramão e deu a volta, de forma a parar em frente ao
semáforo já verde, e desceu do carro segurando uma toalha branca. Naquele mesmo
segundo, alguns poucos carros voltaram a tomar as ruas. Não lembro o que
falamos um ao outro, ou se falamos algo, mas colocamos o homem severamente
machucado no banco de trás do taxi, e largamos a carroça e a bicicleta jogadas
no meio da faixa direita da Av. Paulo VI. Após colocarmos o ferido no carro, eu
simplesmente abri a porta e me sentei no banco do passageiro, sem que o motorista
esboçasse nenhuma reação. Pensando agora, o fiz porque me sentia responsável
pelo homem, afinal ele se desviava de mim quando sofreu a batida. Seguimos em
alta velocidade até o Hospital São Camilo, na Av. Pompéia.
Entre
os muitos adereços decorativos, o taxi tinha no painel e no console central
cerca de quatro ou cinco aparelhos de rádio escuta, além de dois rádios
telecomunicadores presos ao guarda-sol. Parecia que todos estavam ligados simultaneamente,
pois as vozes que emanavam de seus alto-falantes, todas sobrepostas, formavam
um ruído inteligível para mim. O taxista desligou todos rapidamente quando eu
entrei no carro.
Ao
chegarmos ao hospital, o taxista automaticamente entrou no acesso de emergência, e descarregamos
o homem ensanguentado sem nenhuma outra ajuda. Não trocamos uma palavra, que eu
me lembre. Nisso, duas enfermeiras apareceram com uma maca, e receberam o homem
que já carregávamos para dentro. Prontamente, uma o empurrou deitado na maca
pra dentro de uma grande porta de metal, e a outra me perguntou se eu conhecia
o acidentado. Não conhecia. Ela pediu que eu esperasse, e entrou pela mesma
grande porta de metal, no exato momento em que eu me virava para agradecer o
taxista, do qual só vi o carro indo embora. Gravei a placa de seu taxi na
memória.
Tive
que esperar na sala de espera, e me fizeram algumas perguntas sobre o
atropelamento que respondi de má vontade. Após esperar três horas, já não
aguentava mais, e entrei pela porta com a placa “proibido o acesso de pessoas
não autorizadas”, e atravessei um corredor cheirando a desinfetante e fechado
dos dois lados por cortinas de plástico. Ao ver um homem com roupa de médico,
ou talvez enfermeiro, perguntei de pronto se o homem de roupa amarela que havia
batido a cabeça estava vivo. O médico não pareceu incomodado de eu estar ali,
apesar de ser uma pessoa não autorizada, e me respondeu que sim, que estava
bem, e havia levado muitos pontos, mas que não poderia vê-lo e nem ficar ali.
Enquanto eu saía, pensando se minha bicicleta ainda estaria no local do
acidente, uma mulher de avental me abordou e pediu meu telefone, caso o acidentado
precisasse de testemunha se quisesse fazer um boletim de ocorrência. Fui embora
sem falar nada.
Cheguei
ao local do acidente, já no escuro da noite, e vi a carroça vazia agora parada
sobre a calçada e minha bicicleta jogada na grama do outro lado do passeio. O
assento estava molhado, pois a haviam jogado sobre uma poça d’água, mas não
pensei duas vezes antes de sentar e retomar minha volta pra casa. Dormi após um banho rápido, num horário
relativamente cedo para um sábado. Antes de botar a cabeça no travesseiro, anotei
num papel a placa do taxi pra não esquecer. Havia muita coisa na minha cabeça.
No
dia seguinte, acordei me sentindo bem. O sentimento de impotência por não ter
conseguido ajudar de forma nenhuma aquela pessoa ensanguentada à minha frente,
havia passado. E resolvi, tomando um café, que deveria sair e encontrar o
taxista para agradecê-lo, e também passar no hospital pra ver como andava o
carroceiro de má sorte.
Pedalei
no domingo tranquilo até a Igreja do Calvário, na Praça Benedito Calixto, e parei
num ponto de taxi pra perguntar do tal taxista. Descrevi o carro e a placa, e a
aparência do motorista: um homem de cerca de setenta anos, estatura mediana, de
pele branca, e barba e cabelos ainda mais brancos. E ambos muito longos.
Disseram não conhecer, mas que deveria perguntar nos postos de gasolina da
região, pois conheciam todos os taxistas. Ainda me disseram que eu dei sorte do
taxista parar, pois geralmente não parariam para ajudar. Agradeci pelo tempo
despendido, e saí de lá pensando se aquele taxista do dia anterior havia parado para
ajudar, ou se havia vindo especificamente para ajudar, pois pela sua forma de
chegar e preparo para a situação, parecia que eu havia ligado para ele ao invés
do SAMU.
Nos
nove postos de gasolina, e nos outros quatro pontos de taxi em que parei e
repeti a história e descrição do homem, lamentaram o acidente, mas não puderam
me ajudar. Enfim, parei numa lanchonete para comer, e na hora de pagar vi ao
lado do caixa um adesivo com o telefone de uma cooperativa de taxi. Perguntei ao
caixa se tinha outros contatos de taxi, e o homem me deu junto com o meu troco
dois cartões de disque-taxi da região. Liguei. Porém, apesar da boa vontade da
atendente, não havia registros de taxi com aquela placa no seu cadastro. A
atendente prestativa ainda complementou, dizendo que representava todas as cooperativas
de taxi de São Paulo, e que se aquela placa não estava no cadastro, o veículo
era de outro município.
O
garçom, que fumava um cigarro ao meu lado enquanto eu falava no celular, me
disse quando desliguei: “eu conheço este senhor que descreveste aí ao
telefone”. Não levei muito a sério, talvez pela própria forma despojada com que
o garçom falava, como se estivesse somente puxando conversa fiada. Disse então,
que o tal senhor almoçava lá todo dia quando trabalhava no ponto de taxi em
frente. Disse ainda, enquanto se sentava à minha mesa de forma quase íntima, que
o taxista se chamava João Severino Aparecido, e que era grande devoto de São
Miguel Arcanjo. Lembrei instantaneamente de estar sentado no banco do
passageiro do taxi, na Av. Pompéia, e de ver no painel do carro, entre todos os
rádios escuta e telecomunicadores, uma pequena estátua de São Miguel Arcanjo
com um dos pés sobre um demônio, e uma espada empunhada na mão. “O Aparecido
nunca mais apareceu” - disse o garçom, ciente do trocadilho - “já fazem mais de
dois anos”.
Peguei
o caminho de volta pra casa, sem nem passar no Hospital São Camilo. O
acidentado havia sobrevivido, o culpado nunca iria ser responsabilizado, e o
resgate havia sido feito por um taxista aposentado. Tudo havia se resolvido e o
mundo continuava a girar, assim como as rodas de minha bicicleta, que se
distanciava da região em direção ao esquecimento. Já não pensava mais no dia
anterior quando passei em frente ao Parque Ibirapuera, onde uma ou duas dúzias
de pessoas assistiam a algum tipo de evento ao lado do Monumento às Bandeiras.
Cheguei mais perto, atravessando a avenida quando o semáforo para os carros
fechou, e vi que se tratava de uma gravação para a TV, com câmera, iluminação e
repórter. Ignorei, e cheguei em minha casa após vinte minutos.
Pouco
antes de dormir, sentei ao computador para ler meus e-mails, e não me contive
de pesquisar o nome do taxista que havia sido dito pelo garçom da lanchonete.
Não encontrei nada só com o nome, mas quando coloquei o nome com “taxista” no
campo de pesquisas, duas notícias datadas do fim de 2010 apareceram. As duas
tinham o mesmo texto e a mesma foto, porém em sites de notícias diferentes.
Na
madrugada do dia 12 de novembro de 2010, o taxista João Severino Aparecido havia sofrido um acidente com um caminhão, cujo motorista se chamava Paulo Alberto Galvão. O
acidente havia ocorrido na Av. Vinte e Três de Maio, próximo ao túnel do Viaduto
Jaceguai, na região central. Segundo relatos, o caminhão perdeu o controle da
direção após passar por um bueiro horizontal sem grade, e atingiu o taxi, que
capotou duas vezes antes de colidir com uma parede. O resgate demorou a chegar,
e dois dos passageiros do taxi morreram enquanto aguardavam a chegada de
socorro no local. Entre estes, estava a filha do taxista, Gabriela
Regina Aparecido, de 17 anos. Os motoristas de ambos os veículos sofreram apenas ferimentos leves.