“Foi tudo pro caralho”
– disse ela, perguntada sobre como estavam as coisas. Já havia passado pelo
estágio da negação, e estava no da raiva agora. Bebia em goles rápidos a caneca
de cerveja à sua frente, mais pra se manter ocupada do que pela vontade de
beber. Reparei que ela havia mudado a aparência, agora com os cabelos soltos
sobre os ombros ao invés da trança tradicional. Também não usava maquiagem, mas
tinha os olhos mais bonitos do que se estivesse usando, mais penetráveis e
sinceros. Ela disse que tinha lido que era bom esse negócio de mudar o visual.
Além disso, não queria ser reconhecida. Fiquei em silêncio esperando que ela falasse
algo sobre o que havia acontecido, achando que ela havia se esquecido de que
foi ela quem me telefonou de manhã e pediu para lhe buscar no motel de beira de
estrada onde havia dormido, para conversarmos. Quando ligou, disse que queria
ir a um lugar longe, então dirigi com ela até a cidade vizinha. Ela disse: é
melhor mais longe, e acabamos num posto de gasolina numa saída da BR 116. Depois
de alguns minutos de silêncio, começou a contar sua versão do que tinha
acontecido.
Era junho, e a cidade
estava pronta para receber as festividades de São João. Ela havia se prontificado
a ajudar na quermesse da igreja local por insistência do bispo, Seu Alcides,
pois no ano passado havia feito um ótimo trabalho com as barraquinhas de jogos,
que tiveram arrecadação recorde para a paróquia. Ela havia trocado a caixa de
areia tradicional da pescaria por uma piscina inflável com água, entre outras
ideias das quais o bispo havia gostado muito. A organização naquele ano previa
uma festa junina bem maior, agregando duas cidades vizinhas e suas respectivas
paróquias. Na manhã da festa, Olívia já tinha tratado de toda a divulgação,
havia organizado o recebimento e a montagem das barracas, e terminava de cortar
metros e mais metros de bandeirinhas coloridas pra começar a enfeitar o terreno
próximo à igreja, onde seria a celebração.
Em pouco tempo, porém
com a ajuda de muitos moradores, tudo ficou pronto. Havia três barraquinhas de
jogos, onde além da já famosa pescaria, podia se jogar argolas ou acertar uma
bola feita de meias velhas em um alvo onde Olívia havia pintado um demônio, ao
invés do tradicional palhaço ou pato. O bispo Seu Alcides não havia gostado a
princípio, mas deixou que ela fosse adiante com a ideia, e quando viu a barraca
cheia de paroquianos vibrando para acertar o diabo algumas horas mais tarde durante
a festa, até se arriscou a dar uns arremessos contra o cramunhão. Todo esse capricho
que Olívia havia colocado na festa, porém, tinha um objetivo do qual ninguém
até o momento tinha conhecimento. As centenas de bandeirinhas esvoaçantes, a
fogueira enorme que era quase do tamanho de uma casa e que logo seria acesa, a
quadrilha de dança que o jovem padre Romeo, que havia vindo da Itália um ano
antes, tinha sido incumbido de coordenar. Tudo era parte de um plano.
Ela estava tranquila quando
começou a quermesse, e brincava com as crianças que tentavam subir no pau de
sebo. Foi desafiada por elas a tentar, mas estava usando vestido, e se recusou
gentilmente a subir. Além do vestido na altura dos joelhos, usava a mesma
trança que usava sempre, porém entrelaçada com uma fita vermelha que combinava
com a estampa do tal vestido, e que terminava em um laço com uma rosa. Ela havia
também pintado sardinhas no rosto, assim como muitas das mulheres presentes na
festa. Metade dos homens também havia pintado com carvão o típico bigode
caipira, e a outra metade já tinha o tal bigode por opção. No momento em que Olívia
descansava um pouco das crianças, e pensava em pegar um quentão na barraca do
outro lado da quermesse, um casal de adolescentes lhe parou aos gritos de “Correio
elegante! Correio elegante!”, e entregou um papel dobrado em suas mãos. Ela
abriu, e leu o escrito no papel, que desdobrado tinha o formato de um coração:
“Confessei-me a Santo
Antônio,
confessei que estava amando.
Ele deu-me por penitência
que fosse continuando.”
Olívia reconheceu a
letra, e não pôde disfarçar um sorriso. Não pelo versinho manjado, mas pela
audácia do escritor. Ela sabia o quanto era arriscado aquele correio elegante,
ainda mais naquele dia específico, em que a cidade inteira estava ali na
igreja. Os adolescentes cobraram uma resposta dela, e no que ela percebeu que eles
não desconfiavam de nada, e nem sabiam originalmente de quem era o correio
elegante, disse que em breve responderia. O que não chegou a fazer naquela
noite.
Enquanto tomava o
quentão, e a tarde se transmutava em noite, ouviu pelos alto-falantes a chamada
para a quadrilha. Estremeceu ao ouvir a voz de padre Romeo, que tantas vezes
escutara ao pé do ouvido em lugares escondidos, agora ampliada a todos e ao
vento. Sabia que em breve estariam juntos, e, a cada minuto que passava, esse tempo
encurtava drasticamente. Abriu-se um clarão no meio da quermesse quando
acenderam as luzes dos postes, e em cada lado do terreno havia casais se
juntando em uma grande roda. Olívia agarrou o braço de Seu Alcides, o bispo, e
arrastou-o sem muita contestação para a roda. A dança começou, e tanto ela
quanto o padre que falava ao microfone do pequeno palco, por onde os casais
passavam de costas, tiveram que se controlar ao trocar olhares furtivos por
entre a multidão.
A dança terminou num
grande aplauso, e Olívia agradeceu o bispo dobrando o joelho com uma perna
atrás da outra e segurando as pontas do vestido, como era de costume fazerem as
damas de antigamente. No meio das pessoas que se dispersavam, várias apareceram
para lhe agradecer e elogiar pela organização da festa. Uma prima tentou lhe
levar pela mão a uma mesa, dizendo que iria apresentá-la a um fazendeiro muito
bonito que havia perguntado dela enquanto dançava. Olívia fingiu interesse, mas
quando pôde, soltou a mão da prima, e se perdeu no meio da bagunça de pessoas até
dar de frente com Romeo, e sua respiração quase parou. Os olhos dele estavam
brilhando mais do que o normal, assim como os dela, e bastou uma troca de
olhares para que os dois quase explodissem em um entusiasmo delirante. Separaram-se
sem se tocar ou trocar palavras. Logo estariam a sós, como estiveram tantas
vezes antes, no cemitério atrás da igreja de madrugada, ou no confessionário
durante as manhãs sem missa.
O alto-falante voltou
a zunir, e a voz que ecoou dessa vez foi a de Seu Alcides, que convidou todos à
lateral da igreja para acenderem a monumental fogueira. A cidade toda se
apressou a cercar a montanha de madeira, e Olívia fingiu arrumar algo na
barraquinha de doces enquanto a quermesse se esvaziava em detrimento da atração
maior da noite. Logo que se viu sozinha, correu através do terreno de terra
deserto até a frente da igreja. Bateu cinco vezes bem rápido na grande porta de
madeira, fez uma pausa, e bateu mais duas vezes. A porta se abriu e ela entrou,
dando de frente com Romeo, que tinha um semblante excitado, não somente pelo
que haviam planejado, mas também por finalmente estar sozinho com ela.
Empurrou-a contra a porta fechada e a beijou desesperadamente passando a mão
por todo seu corpo, do pescoço às coxas. Ela se derreteu por um instante, mas
então se desvencilhou do beijo e olhou para ele séria. Aquela não era a hora.
Os dois amantes
subiram por uma escada lateral até o segundo andar da igreja, onde morava o
bispo Seu Alcides, e, enquanto faziam isso, Olívia reparou no grande pano
bordado em ouro que havia na parede oposta à nave principal. O pano retratava a
famosa imagem de São João Batista batizando Jesus Cristo, e acima do rio onde
estavam, entre os dois, havia uma pomba branca que era tida como a manifestação
do Espírito Santo na ocasião. Olívia reparou ainda que o quarto do bispo havia
sido aberto à força, e as gavetas estavam reviradas. Romeo soltou a mão de
Olívia e apontou para o cofre da parede, que ficava atrás da cortina, dizendo:
“só falta o cofre”. Ela pegou um pé-de-cabra, que estava apoiado na parede, e
golpeou o cofre três vezes. Golpeou-o de forma simultânea à contagem regressiva
para acender a fogueira, que era gritada pela multidão lá fora sob a janela, e
a poucos metros deles: “um... dois... trêêês!”. O cofre se abriu e lá estava a
coleção de joias da família de Seu Alcides, e um bolo de dinheiro que ambos já sabiam
que estava guardado ali para a reforma dos salões laterais da igreja. Uma
arrecadação feita por toda a cidade por mais de um ano.
Olívia pegou o
dinheiro e as joias de uma só vez, e botou dentro da mala que Romeo havia
aberto sobre a cama. E dessa vez foi ela quem o agarrou apaixonada, e os dois
caíram sobre a inviolada cama de solteiro do bispo. O clarão da fogueira
refletiu no teto do quarto, e o som da madeira queimando e gritos de toda a
cidade pareciam não encobrir o barulho de seus corações batendo. Estavam
possuídos de um amor completamente descontrolado, e iam se entregar aos seus
desejos ali mesmo, pela milésima vez, mas com a mesma paixão da primeira, e na
situação mais perigosa possível. Foi quando, por entre os próprios suspiros,
puderam ouvir uma nova contagem regressiva, e a poucos metros da janela viram
um balão subindo muito devagar no ar, e meio de lado. De supetão, o vento
empurrou o balão para baixo e para dentro do quarto, como se o movimento
houvesse sido calculado. E, sem nem encostar nas arestas da janela, o balão
pousou em chamas no meio do quarto onde Romeo e Olívia já estavam seminus em
meio ao concubinato sacrílego.
A gritaria sob a
janela foi geral. Olívia e Romeo ignoraram completamente o fogo do balão
delator, e vestiram-se o mais rápido possível, enquanto fechavam as gavetas, o
cofre, voltavam a cortina de volta para o lugar, e jogavam o pé-de-cabra
debaixo do armário. Em uma fração de segundos, a porta da igreja se abriu e uma
multidão de homens subiu as escadas, para encontrar Olívia segurando uma mala
no corredor, e o jovem padre encobrindo as labaredas com um cobertor. Com a
ajuda dos outros homens, o fogo foi rapidamente apagado. No meio da confusão,
Olívia sumiu, e reapareceu sem a mala. Seu Alcides, por entre a fumaça do fogo
que se extinguia, gritou a todos que esperavam à porta de seu quarto: “um viva
ao padre Romeo, o herói da noite!”. “Viva!” gritaram todos, enquanto Romeo secava
o suor e limpava a fuligem em seu rosto com um pano. Por um segundo, seu olhar
o traiu e ele olhou com o canto dos olhos para Olívia, o que foi notado pelo
bispo, assim como o fato de que sua paroquiana favorita estava agora sem a fita
vermelha e a rosa que tinha no cabelo há poucos minutos atrás.
Como a festa já
estava em estado avançado, e, salvo pelas crianças, todos já haviam bebido em
conjunto três caldeirões de quentão e quatro de vinho quente, a situação não
foi notada por mais ninguém. Todos estavam orgulhosos com a organização da
brigada de incêndio improvisada, e atônitos com a velocidade do padre, que
havia evitado uma catástrofe. Todos o cumprimentavam, e Olívia também foi
envolta pela multidão que a puxava de um lado ao outro fazendo perguntas, e
parabenizando-a pela centésima vez pela organização da festa. No meio da
confusão de vizinhos e parentes, não puderam se encontrar mais, até que no fim
da festa Olívia foi forçada a voltar com sua prima pra casa. E o padre foi
seguido de perto pelo bispo desconfiado pelo resto da noite.
“Logo que eu cheguei
em casa, me deitei. E quando escutei que todos já dormiam, fugi pela janela e
fui pro motel da estrada velha”, disse Olívia pra mim, tomando o último gole da
cerveja. "Hoje cedo o bispo deve ter acordado, e se ainda não o fez, pois
ficou vigiando o Romeo até dormir, vai encontrar seu carro parado atrás da
igreja com a chave no contato e lotado de joias e dinheiro da cidade inteira.
Eu e Romeo nos revezamos durante a festa, e pilhamos a cidade toda. Metade da
cidade já deve ter reparado a essa altura”. Eu estava escutando-a confessar, completamente
perplexo, e minha cerveja já tinha esquentado sob o sol do meio-dia, então
tentei consolá-la: “De fato, todos já perceberam os roubos, mas ninguém vai
saber que foram vocês. Vocês dois são as últimas pessoas de quem iriam
desconfiar. Devem é estar preocupados achando que você foi sequestrada, ou algo
do tipo”, eu disse.
“Esqueci de falar,” -
ela disse olhando nos meus olhos - “que junto das coisas roubadas, dentro do
carro, há uma pasta. E dentro dessa pasta estão duas passagens para Florença,
com os nomes Romeo e Olívia escritos nelas. E eu não tive nem tempo de avisar o
Romeo disso, então ainda devem estar lá. O único contato que tive com ele
depois da confusão do incêndio de ontem, foi uma mensagem de celular em que ele
me dizia que não podia continuar com isso, e que estava tudo acabado”. Ela
deixou claro que havia tentado ligar a ele de todas as formas possíveis, mas
que ele não atendia, e ela estava ficando desesperada imaginando se algo teria
acontecido a ele. Nesse momento estava saindo do estágio da raiva e entrando
rapidamente no estágio da negociação e diálogo. Pediu: “você precisa me ajudar.
Não confio em ninguém dessa cidade, e, muito em breve, ninguém mais confiará em
mim”.
Ela estendeu uma das
mãos, e colocou um bilhete na mesa à minha frente. Estava dobrado com o nome de
seu amante escrito em cima. Pediu que eu o levasse a ele ainda hoje. Era a
única coisa que me pediria, disse ela, pois não queria me envolver mais ainda
naquela história, que além de criminosa era profana. Senti que o peso que ela
sentia vinha mais pela parte da profanidade do que pelos crimes. Eu estava
confuso com aquilo, não conseguia conceber que os dois tivessem escondido tudo
de todos, e por todo esse tempo. Não entendia o que haviam pensado os dois, só
sabia que seriam presos pelos roubos logo que fossem descobertos, e isso era só
uma questão de tempo. Mas sabia o porquê de ela ter me chamado. Ela sabia que
eu entenderia o amor impossível deles. Então, me senti obrigado a guardar
aquele bilhete, e após deixá-la no motel, dirigi de volta à cidade.
Parei meu carro na
frente de onde moro, um prédio de quatro andares sem estacionamento. O porteiro
estava no gramado, usando luvas de jardinagem, e olhou pra mim com os olhos quase
cerrados devido ao sol. “Achei que o senhor estivesse em casa”, falou. Eu disse
que não, que iria dar um pulo na igreja pra ver se precisavam de ajuda pra
desmontar as coisas da festa. Então ele disse: “que coincidência, o padre Romeo
veio aqui há pouco procurando por você. Achava que você estava em casa, então
deixei que ele entrasse”. Não era algo comum eu receber visitas, muito menos do
padre com o qual só tinha trocado meia dúzia de palavras na vida. Deixei o
porteiro com sua jardinagem, e subi correndo até o terceiro andar, onde ficava
meu apartamento. A fechadura estava intacta, porém a porta estava destrancada.
Senti um frio na espinha quando girei a maçaneta e abri a porta, mas não havia
ninguém lá. Eu já desconfiava, e bastou entrar no banheiro para ver que o
relógio de ouro do meu avô tinha sumido, além do dinheiro que eu tinha guardado
numa caixinha de metal no criado-mudo.
Tranquei a porta e
saí correndo em direção à igreja, que ficava a quatro quadras do meu
apartamento. A cidade estava mais vazia do que o normal, e a igreja estava de
portas fechadas. As barracas da quermesse estavam sendo desmontadas por dois
homens com um caminhão, mas as bandeirinhas, os sacos de lixo e tudo o mais
ainda estavam lá exatamente como haviam ficado na noite anterior. Um senhor de
idade estava sentado na escada da frente da igreja, lendo o jornal, e lhe
perguntei da missa. “O bispo disse ainda ontem, que hoje não teria missa” -
respondeu. Então empurrei a grande porta de madeira, que pra minha surpresa se
abriu com um rangido suave. Subi as escadas laterais, e, enquanto fazia isso,
notei que o pano bordado em ouro que representava o batismo de Jesus Cristo por
São João Batista, havia desaparecido. Abri a porta do quarto do bispo, e
encontrei-o amarrado na cama, e amordaçado com uma fita vermelha com uma rosa
na ponta. Afrouxei os nós dos calcanhares e pulsos, e depois os da mordaça, e
no mesmo instante veio o grito: “mas que padre filho da puta!”.
Enquanto o bispo
praguejava, lembrei-me do bilhete, e o peguei no fundo do meu bolso. Ao abri-lo,
estranhei de ver que o papel tinha formato de coração:
“Confessei-me a Santo Antônio,
confessei que estava
amando.
Ele me disse que
roubasse
e fugisse desse bando.”