a
tradição
frita no brilho
da vitrine do boteco
da quermesse do aeroporto
massa é batata e farinha de trigo
recheio é frango, não mais que isso
o guardanapo engordura os dedos
queima a boca a fornada recente
seu formato de coxa é gota
em óleo quente
---------------------------------------------------------------------------------------------
---------------------
---------------------------------
------------------------------------------
---------------------------------------------
----------------------------------------------
------------------------------------------
--------------------------------
---------------------
------------
--








“Foi tudo pro caralho” – disse ela, perguntada sobre como estavam as coisas. Já havia passado pelo estágio da negação, e estava no da raiva agora. Bebia em goles rápidos a caneca de cerveja à sua frente, mais pra se manter ocupada do que pela vontade de beber. Reparei que ela havia mudado a aparência, agora com os cabelos soltos sobre os ombros ao invés da trança tradicional. Também não usava maquiagem, mas tinha os olhos mais bonitos do que se estivesse usando, mais penetráveis e sinceros. Ela disse que tinha lido que era bom esse negócio de mudar o visual. Além disso, não queria ser reconhecida. Fiquei em silêncio esperando que ela falasse algo sobre o que havia acontecido, achando que ela havia se esquecido de que foi ela quem me telefonou de manhã e pediu para lhe buscar no motel de beira de estrada onde havia dormido, para conversarmos. Quando ligou, disse que queria ir a um lugar longe, então dirigi com ela até a cidade vizinha. Ela disse: é melhor mais longe, e acabamos num posto de gasolina numa saída da BR 116. Depois de alguns minutos de silêncio, começou a contar sua versão do que tinha acontecido.

Era junho, e a cidade estava pronta para receber as festividades de São João. Ela havia se prontificado a ajudar na quermesse da igreja local por insistência do bispo, Seu Alcides, pois no ano passado havia feito um ótimo trabalho com as barraquinhas de jogos, que tiveram arrecadação recorde para a paróquia. Ela havia trocado a caixa de areia tradicional da pescaria por uma piscina inflável com água, entre outras ideias das quais o bispo havia gostado muito. A organização naquele ano previa uma festa junina bem maior, agregando duas cidades vizinhas e suas respectivas paróquias. Na manhã da festa, Olívia já tinha tratado de toda a divulgação, havia organizado o recebimento e a montagem das barracas, e terminava de cortar metros e mais metros de bandeirinhas coloridas pra começar a enfeitar o terreno próximo à igreja, onde seria a celebração.

Em pouco tempo, porém com a ajuda de muitos moradores, tudo ficou pronto. Havia três barraquinhas de jogos, onde além da já famosa pescaria, podia se jogar argolas ou acertar uma bola feita de meias velhas em um alvo onde Olívia havia pintado um demônio, ao invés do tradicional palhaço ou pato. O bispo Seu Alcides não havia gostado a princípio, mas deixou que ela fosse adiante com a ideia, e quando viu a barraca cheia de paroquianos vibrando para acertar o diabo algumas horas mais tarde durante a festa, até se arriscou a dar uns arremessos contra o cramunhão. Todo esse capricho que Olívia havia colocado na festa, porém, tinha um objetivo do qual ninguém até o momento tinha conhecimento. As centenas de bandeirinhas esvoaçantes, a fogueira enorme que era quase do tamanho de uma casa e que logo seria acesa, a quadrilha de dança que o jovem padre Romeo, que havia vindo da Itália um ano antes, tinha sido incumbido de coordenar. Tudo era parte de um plano.

Ela estava tranquila quando começou a quermesse, e brincava com as crianças que tentavam subir no pau de sebo. Foi desafiada por elas a tentar, mas estava usando vestido, e se recusou gentilmente a subir. Além do vestido na altura dos joelhos, usava a mesma trança que usava sempre, porém entrelaçada com uma fita vermelha que combinava com a estampa do tal vestido, e que terminava em um laço com uma rosa. Ela havia também pintado sardinhas no rosto, assim como muitas das mulheres presentes na festa. Metade dos homens também havia pintado com carvão o típico bigode caipira, e a outra metade já tinha o tal bigode por opção. No momento em que Olívia descansava um pouco das crianças, e pensava em pegar um quentão na barraca do outro lado da quermesse, um casal de adolescentes lhe parou aos gritos de “Correio elegante! Correio elegante!”, e entregou um papel dobrado em suas mãos. Ela abriu, e leu o escrito no papel, que desdobrado tinha o formato de um coração:

“Confessei-me a Santo Antônio,
confessei que estava amando.
Ele deu-me por penitência
que fosse continuando.”

Olívia reconheceu a letra, e não pôde disfarçar um sorriso. Não pelo versinho manjado, mas pela audácia do escritor. Ela sabia o quanto era arriscado aquele correio elegante, ainda mais naquele dia específico, em que a cidade inteira estava ali na igreja. Os adolescentes cobraram uma resposta dela, e no que ela percebeu que eles não desconfiavam de nada, e nem sabiam originalmente de quem era o correio elegante, disse que em breve responderia. O que não chegou a fazer naquela noite.

Enquanto tomava o quentão, e a tarde se transmutava em noite, ouviu pelos alto-falantes a chamada para a quadrilha. Estremeceu ao ouvir a voz de padre Romeo, que tantas vezes escutara ao pé do ouvido em lugares escondidos, agora ampliada a todos e ao vento. Sabia que em breve estariam juntos, e, a cada minuto que passava, esse tempo encurtava drasticamente. Abriu-se um clarão no meio da quermesse quando acenderam as luzes dos postes, e em cada lado do terreno havia casais se juntando em uma grande roda. Olívia agarrou o braço de Seu Alcides, o bispo, e arrastou-o sem muita contestação para a roda. A dança começou, e tanto ela quanto o padre que falava ao microfone do pequeno palco, por onde os casais passavam de costas, tiveram que se controlar ao trocar olhares furtivos por entre a multidão.

A dança terminou num grande aplauso, e Olívia agradeceu o bispo dobrando o joelho com uma perna atrás da outra e segurando as pontas do vestido, como era de costume fazerem as damas de antigamente. No meio das pessoas que se dispersavam, várias apareceram para lhe agradecer e elogiar pela organização da festa. Uma prima tentou lhe levar pela mão a uma mesa, dizendo que iria apresentá-la a um fazendeiro muito bonito que havia perguntado dela enquanto dançava. Olívia fingiu interesse, mas quando pôde, soltou a mão da prima, e se perdeu no meio da bagunça de pessoas até dar de frente com Romeo, e sua respiração quase parou. Os olhos dele estavam brilhando mais do que o normal, assim como os dela, e bastou uma troca de olhares para que os dois quase explodissem em um entusiasmo delirante. Separaram-se sem se tocar ou trocar palavras. Logo estariam a sós, como estiveram tantas vezes antes, no cemitério atrás da igreja de madrugada, ou no confessionário durante as manhãs sem missa.

O alto-falante voltou a zunir, e a voz que ecoou dessa vez foi a de Seu Alcides, que convidou todos à lateral da igreja para acenderem a monumental fogueira. A cidade toda se apressou a cercar a montanha de madeira, e Olívia fingiu arrumar algo na barraquinha de doces enquanto a quermesse se esvaziava em detrimento da atração maior da noite. Logo que se viu sozinha, correu através do terreno de terra deserto até a frente da igreja. Bateu cinco vezes bem rápido na grande porta de madeira, fez uma pausa, e bateu mais duas vezes. A porta se abriu e ela entrou, dando de frente com Romeo, que tinha um semblante excitado, não somente pelo que haviam planejado, mas também por finalmente estar sozinho com ela. Empurrou-a contra a porta fechada e a beijou desesperadamente passando a mão por todo seu corpo, do pescoço às coxas. Ela se derreteu por um instante, mas então se desvencilhou do beijo e olhou para ele séria. Aquela não era a hora.

Os dois amantes subiram por uma escada lateral até o segundo andar da igreja, onde morava o bispo Seu Alcides, e, enquanto faziam isso, Olívia reparou no grande pano bordado em ouro que havia na parede oposta à nave principal. O pano retratava a famosa imagem de São João Batista batizando Jesus Cristo, e acima do rio onde estavam, entre os dois, havia uma pomba branca que era tida como a manifestação do Espírito Santo na ocasião. Olívia reparou ainda que o quarto do bispo havia sido aberto à força, e as gavetas estavam reviradas. Romeo soltou a mão de Olívia e apontou para o cofre da parede, que ficava atrás da cortina, dizendo: “só falta o cofre”. Ela pegou um pé-de-cabra, que estava apoiado na parede, e golpeou o cofre três vezes. Golpeou-o de forma simultânea à contagem regressiva para acender a fogueira, que era gritada pela multidão lá fora sob a janela, e a poucos metros deles: “um... dois... trêêês!”. O cofre se abriu e lá estava a coleção de joias da família de Seu Alcides, e um bolo de dinheiro que ambos já sabiam que estava guardado ali para a reforma dos salões laterais da igreja. Uma arrecadação feita por toda a cidade por mais de um ano.

Olívia pegou o dinheiro e as joias de uma só vez, e botou dentro da mala que Romeo havia aberto sobre a cama. E dessa vez foi ela quem o agarrou apaixonada, e os dois caíram sobre a inviolada cama de solteiro do bispo. O clarão da fogueira refletiu no teto do quarto, e o som da madeira queimando e gritos de toda a cidade pareciam não encobrir o barulho de seus corações batendo. Estavam possuídos de um amor completamente descontrolado, e iam se entregar aos seus desejos ali mesmo, pela milésima vez, mas com a mesma paixão da primeira, e na situação mais perigosa possível. Foi quando, por entre os próprios suspiros, puderam ouvir uma nova contagem regressiva, e a poucos metros da janela viram um balão subindo muito devagar no ar, e meio de lado. De supetão, o vento empurrou o balão para baixo e para dentro do quarto, como se o movimento houvesse sido calculado. E, sem nem encostar nas arestas da janela, o balão pousou em chamas no meio do quarto onde Romeo e Olívia já estavam seminus em meio ao concubinato sacrílego.

A gritaria sob a janela foi geral. Olívia e Romeo ignoraram completamente o fogo do balão delator, e vestiram-se o mais rápido possível, enquanto fechavam as gavetas, o cofre, voltavam a cortina de volta para o lugar, e jogavam o pé-de-cabra debaixo do armário. Em uma fração de segundos, a porta da igreja se abriu e uma multidão de homens subiu as escadas, para encontrar Olívia segurando uma mala no corredor, e o jovem padre encobrindo as labaredas com um cobertor. Com a ajuda dos outros homens, o fogo foi rapidamente apagado. No meio da confusão, Olívia sumiu, e reapareceu sem a mala. Seu Alcides, por entre a fumaça do fogo que se extinguia, gritou a todos que esperavam à porta de seu quarto: “um viva ao padre Romeo, o herói da noite!”. “Viva!” gritaram todos, enquanto Romeo secava o suor e limpava a fuligem em seu rosto com um pano. Por um segundo, seu olhar o traiu e ele olhou com o canto dos olhos para Olívia, o que foi notado pelo bispo, assim como o fato de que sua paroquiana favorita estava agora sem a fita vermelha e a rosa que tinha no cabelo há poucos minutos atrás.

Como a festa já estava em estado avançado, e, salvo pelas crianças, todos já haviam bebido em conjunto três caldeirões de quentão e quatro de vinho quente, a situação não foi notada por mais ninguém. Todos estavam orgulhosos com a organização da brigada de incêndio improvisada, e atônitos com a velocidade do padre, que havia evitado uma catástrofe. Todos o cumprimentavam, e Olívia também foi envolta pela multidão que a puxava de um lado ao outro fazendo perguntas, e parabenizando-a pela centésima vez pela organização da festa. No meio da confusão de vizinhos e parentes, não puderam se encontrar mais, até que no fim da festa Olívia foi forçada a voltar com sua prima pra casa. E o padre foi seguido de perto pelo bispo desconfiado pelo resto da noite.

“Logo que eu cheguei em casa, me deitei. E quando escutei que todos já dormiam, fugi pela janela e fui pro motel da estrada velha”, disse Olívia pra mim, tomando o último gole da cerveja. "Hoje cedo o bispo deve ter acordado, e se ainda não o fez, pois ficou vigiando o Romeo até dormir, vai encontrar seu carro parado atrás da igreja com a chave no contato e lotado de joias e dinheiro da cidade inteira. Eu e Romeo nos revezamos durante a festa, e pilhamos a cidade toda. Metade da cidade já deve ter reparado a essa altura”. Eu estava escutando-a confessar, completamente perplexo, e minha cerveja já tinha esquentado sob o sol do meio-dia, então tentei consolá-la: “De fato, todos já perceberam os roubos, mas ninguém vai saber que foram vocês. Vocês dois são as últimas pessoas de quem iriam desconfiar. Devem é estar preocupados achando que você foi sequestrada, ou algo do tipo”, eu disse.

“Esqueci de falar,” - ela disse olhando nos meus olhos - “que junto das coisas roubadas, dentro do carro, há uma pasta. E dentro dessa pasta estão duas passagens para Florença, com os nomes Romeo e Olívia escritos nelas. E eu não tive nem tempo de avisar o Romeo disso, então ainda devem estar lá. O único contato que tive com ele depois da confusão do incêndio de ontem, foi uma mensagem de celular em que ele me dizia que não podia continuar com isso, e que estava tudo acabado”. Ela deixou claro que havia tentado ligar a ele de todas as formas possíveis, mas que ele não atendia, e ela estava ficando desesperada imaginando se algo teria acontecido a ele. Nesse momento estava saindo do estágio da raiva e entrando rapidamente no estágio da negociação e diálogo. Pediu: “você precisa me ajudar. Não confio em ninguém dessa cidade, e, muito em breve, ninguém mais confiará em mim”.

Ela estendeu uma das mãos, e colocou um bilhete na mesa à minha frente. Estava dobrado com o nome de seu amante escrito em cima. Pediu que eu o levasse a ele ainda hoje. Era a única coisa que me pediria, disse ela, pois não queria me envolver mais ainda naquela história, que além de criminosa era profana. Senti que o peso que ela sentia vinha mais pela parte da profanidade do que pelos crimes. Eu estava confuso com aquilo, não conseguia conceber que os dois tivessem escondido tudo de todos, e por todo esse tempo. Não entendia o que haviam pensado os dois, só sabia que seriam presos pelos roubos logo que fossem descobertos, e isso era só uma questão de tempo. Mas sabia o porquê de ela ter me chamado. Ela sabia que eu entenderia o amor impossível deles. Então, me senti obrigado a guardar aquele bilhete, e após deixá-la no motel, dirigi de volta à cidade.

Parei meu carro na frente de onde moro, um prédio de quatro andares sem estacionamento. O porteiro estava no gramado, usando luvas de jardinagem, e olhou pra mim com os olhos quase cerrados devido ao sol. “Achei que o senhor estivesse em casa”, falou. Eu disse que não, que iria dar um pulo na igreja pra ver se precisavam de ajuda pra desmontar as coisas da festa. Então ele disse: “que coincidência, o padre Romeo veio aqui há pouco procurando por você. Achava que você estava em casa, então deixei que ele entrasse”. Não era algo comum eu receber visitas, muito menos do padre com o qual só tinha trocado meia dúzia de palavras na vida. Deixei o porteiro com sua jardinagem, e subi correndo até o terceiro andar, onde ficava meu apartamento. A fechadura estava intacta, porém a porta estava destrancada. Senti um frio na espinha quando girei a maçaneta e abri a porta, mas não havia ninguém lá. Eu já desconfiava, e bastou entrar no banheiro para ver que o relógio de ouro do meu avô tinha sumido, além do dinheiro que eu tinha guardado numa caixinha de metal no criado-mudo.

Tranquei a porta e saí correndo em direção à igreja, que ficava a quatro quadras do meu apartamento. A cidade estava mais vazia do que o normal, e a igreja estava de portas fechadas. As barracas da quermesse estavam sendo desmontadas por dois homens com um caminhão, mas as bandeirinhas, os sacos de lixo e tudo o mais ainda estavam lá exatamente como haviam ficado na noite anterior. Um senhor de idade estava sentado na escada da frente da igreja, lendo o jornal, e lhe perguntei da missa. “O bispo disse ainda ontem, que hoje não teria missa” - respondeu. Então empurrei a grande porta de madeira, que pra minha surpresa se abriu com um rangido suave. Subi as escadas laterais, e, enquanto fazia isso, notei que o pano bordado em ouro que representava o batismo de Jesus Cristo por São João Batista, havia desaparecido. Abri a porta do quarto do bispo, e encontrei-o amarrado na cama, e amordaçado com uma fita vermelha com uma rosa na ponta. Afrouxei os nós dos calcanhares e pulsos, e depois os da mordaça, e no mesmo instante veio o grito: “mas que padre filho da puta!”.

Enquanto o bispo praguejava, lembrei-me do bilhete, e o peguei no fundo do meu bolso. Ao abri-lo, estranhei de ver que o papel tinha formato de coração:

“Confessei-me a Santo Antônio,
confessei que estava amando.
Ele me disse que roubasse
e fugisse desse bando.”